SUCESSÃO TRABALHISTA NOS CASOS DE FALECIMENTO DO TITULAR DE SERVIÇOS NOTARIAIS
Em decisão recente, a 2ª Turma do TST negou provimento ao agravo de instrumento que pretendia reverter uma decisão do TRT da 3ª Região que não reconheceu o vínculo de emprego da filha dos titulares do Tabelionato de Notas de Frutal, MG.
Os fundamentos, veiculados na notícia (o acórdão ainda não está disponível), falam por si. Se a autora atuou em substituição aos titulares, auferindo os frutos do empreendimento, é evidente que atuou como empregadora e não como empregada.
Situação contígua e bastante controversa é a dos empregados do cartório nestes casos. Já que os serviços notariais não se organizam como uma estrutura empresarial convencional, quando ocorre a alteração da titularidade surge a dúvida sobre a responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas. Quem deve pagar, o espólio do titular falecido ou o novo titular?
Enfrentei esta situação quando atuei em Santiago, RS. Transcrevo, abaixo, o tópico da sentença que trata da questão (RT-00028-2005-831-04-00-1). Os fundamentos trazem elementos importantes para qualquer caso de sucessão de empregadores.
SUBSTITUIÇÃO DE TITULAR DE CARTÓRIO – SUCESSÃO DE EMPREGADORES – NATUREZA DA ATIVIDADE NOTARIAL E RELAÇÕES TRABALHISTAS – RESPONSABILIDADE DO SUCESSORNão há discussão nos autos sobre a transferência da titularidade do Cartório para (...). Também é patente que a parte autora presta os mesmos serviços ao Cartório desde que foi contratada. Discute-se, isto sim, se as obrigações decorrentes do contrato de trabalho são de responsabilidade do “de cujus” ou da atual titular do Cartório.Segundo a inicial, a morte do titular extingue o contrato de trabalho até então existente, e as obrigações devem ser satisfeitas pelo espólio. Já o réu sustenta que se trata de sucessão de empregadores.Embora a questão pareça singela, merece uma abordagem mais profunda.Efetivamente, as funções notariais são atividades tipicamente públicas, exercidas por particulares por delegação do Estado. Nesta hipótese, como em todas as demais formas de delegação de serviço público, o Estado fica responsável pela fiscalização do resultado, porém a forma e os meios utilizados para chegar a ele ficam reservadas à iniciativa do concessionário. Em outras palavras, quando o Estado atribui ao particular o poder de realizar determinada tarefa de interesse público, o faz porque lhe interessa mais o resultado do que o modo como se chega a ele. Não se está a dizer que não importa nada à administração pública os atos dos particulares que exercem tais atividades. Certamente importa, pois o particular não está autorizado a utilizar procedimentos ilícitos para desenvolver sua incumbência. Contudo, se as atividades forem prestadas de acordo com as regras do direito, o objetivo será alcançado.As relações do concessionário, seja ele pessoa jurídica ou natural, com outras pessoas, com o objetivo de implementar o serviço delegado, são reguladas pelo direito privado e não pelo direito público. Apenas as relações do concessionário com o Estado e com os beneficiários do serviço delegado interessam à administração pública. Por exemplo, quando a União delega a hospitais privados a incumbência de prestar assistência médica e hospitalar através do Sistema Único de Saúde, pouco importa ao poder público se os médicos contratados por estes hospitais são autônomos ou empregados, ou se a manutenção dos equipamentos é feita por empregados ou por empresa especializada. A União está preocupada com o atendimento da demanda de saúde, este sim um serviço público. Sendo prestado a contento, ou seja, com resultado adequado, a Administração não poderá se imiscuir na organização dos hospitais.Este exemplo é similar ao caso dos autos. Para o Estado importa a prestação dos serviços notariais, de registros, protestos etc. Como ao titular do cartório é atribuída a responsabilidade de prestar tais serviços sem restrições quanto ao modo com que irá fazê-lo, ele tem o poder de estabelecer relações privadas para a consecução desse fim. Não pode haver dúvida sobre isso. Se o titular, por exemplo, implementar um sistema de informatização tal que dispense a presença de empregados, poderá fazer os serviços pessoalmente, e a administração pública nada poderá objetar, a menos que o serviço não seja feito dentro de padrões de qualidade. Também poderá o titular contratar seus parentes e não se poderá dizer que de nepotismo se trata, porque não se aplicam neste caso as regras de direito público. Está claro, então, que as relações do titular do cartório com os prestadores de serviço que lhe auxiliam são relações de caráter privado. Se são privadas as relações, privado é o direito que as regula.A sucessão de empregadores é prevista nos artigos 10 e 448 da CLT, aplicáveis aos casos de relações de trabalho entre particulares. O primeiro trata dos direitos adquiridos dos empregados em relação a alterações na estrutura jurídica do empreendimento. O segundo estabelece que os contratos de trabalho não são afetados quando houver mudança na propriedade ou na estrutura jurídica.Um breve comentário é preciso. A premissa fundamental desses dispositivos é a vinculação do trabalhador ao empreendimento, à estrutura produtiva. Claro, porque se o trabalhador ficasse vinculado à configuração empresarial original ou ao proprietário do empreendimento, não teria nenhuma segurança quando ocorressem mudanças. O trabalhador, ao se empregar, insere-se numa certa estrutura de produção e contribui com sua força de trabalho para a movimentação da empresa. Se a empresa permanece em movimento e a estrutura produtiva se mantém, é evidente que o maior interesse do empregado é manter-se vinculado a ela, pois só assim terá assegurados os meios para obter a satisfação dos seus créditos salariais.No caso dos autos, a parte autora e seus colegas foram contratados pelo então titular do Cartório, que faleceu. Vincularam-se ao empreendimento e não ao titular do empreendimento, tanto é que continuam prestando os mesmos serviços (fato que é incontroverso e está confirmado pela prova oral) na mesma forma que já o prestavam, sempre em prol do alcance dos mesmos fins. Estão e estavam contribuindo com sua força de trabalho para o empreendimento, donde tiravam e continuam tirando seu sustento. Este, quem lhes pagava não era o titular do Cartório, mas o próprio Cartório, que, ainda que não tenha personalidade jurídica própria, constitui-se como uma estrutura produtiva. O contrato de trabalho firmado pelo titular do Cartório não se extingue com a morte do empregador, porque este é sucedido por outro e a empresa continua em funcionamento.Além disso, se não olharmos para um ou outro caso particular, a regra geral é de que o empreendimento que continua operando detém maiores possibilidades de arcar com os encargos trabalhistas do que o empresário que o deixa. No caso, se o patrimônio do espólio fosse desprezível, certamente a ação seria movida em face do sucessor, e as teses seriam defendidas igualmente, só que pelas partes opostas. Demais disso, sujeitar o trabalhador a habilitar seu crédito no inventário para concorrer com todos os demais credores, ainda que se admita a preferência dos créditos trabalhistas, é contrário aos princípios do Direito do Trabalho. Se há créditos em favor da parte autora, que sejam arcados pelo empreendimento. Não há dúvida de que o patrimônio do réu foi constituído em parte com base no esforço dos trabalhadores, mas o empreendimento não pode ser confundido com quem o dirige e o patrimônio de um é diferente do patrimônio do outro, basta ver que os equipamentos, móveis e instalações permanecem os mesmos, apesar da morte do antigo titular.Estão aí os fundamentos para que se conclua que houve sucessão de empregadores e não extinção do contrato de trabalho. Mas, além disso, é importante ampliar ainda um pouco mais a discussão para se apreciar os outros argumentos da parte autora. Um deles é que a atual titular, (...), ocupa o cargo em caráter precário, pois aguarda preenchimento definitivo do cargo. Isto é certo. Porém, como já se disse, a titular responderá enquanto titular for. Quando deixar de sê-lo, se deixar, deixará também de ser responsável, operando-se nova sucessão de empregadores. E aí está evidenciada mais uma vez a importância do instituto da sucessão de empregadores. Com isso, fica afastado também o argumento de que a caracterização da sucessão é injusta.Outra tese do autor é no sentido de que a continuidade na prestação do serviço é imposição de ordem pública e que por este motivo este fato não serve para dizer que ocorreu sucessão. Não se discute mesmo que a continuidade é imperiosa, mas ser imperiosa ou não, não é importante, basta que haja continuidade.Ainda, o artigo 483, § 2º, da CLT não faculta ao empregado a extinção do contrato neste caso. É que o titular de cartório notarial não se constitui em empresa individual. Empresa é movimento, é impulso em direção a uma certa finalidade, não é empreendimento, não é estrutura produtiva e com ela não se confunde. Quando o dispositivo legal menciona “empregador constituído em empresa individual” está se referindo ao empregador que tem um negócio que só se movimenta em função de sua iniciativa. Morta esta, com seu dono, a empresa (iniciativa, movimento) só permanecerá se algum herdeiro a assumir, porém os contornos da empresa se modificarão conforme as convicções e vontades do novo empreendedor. Por isso, a faculdade de extinção do contrato por iniciativa do empregado, porque ele pode não querer permanecer vinculado a um empreendimento que se move segundo outras intenções que não as do empregador original. Isto não acontece quando a empresa é complexa, distinta da vontade individual do empregador, seja porque constituída por mais de uma vontade (as dos diversos sócios, nos casos de sociedades, por exemplo), seja porque constituída pela vontade de outros, como a do Estado, exemplo dos autos. A atividade notarial é empresa pública – iniciativa e funcionamento segundo imposição do Estado – e não morre com o titular que ocupa o cartório. Claro, porque a ele não pertence. Então, se o titular falecido não era constituído em empresa individual, não pode o empregado pretender a extinção do contrato, mesmo porque, de fato, isso ele não pretende, pois continua trabalhando.Por fim, deve-se fazer referência à legislação estadual que regula a sucessão de titulares dos serviços notariais. O § 1º do artigo 106 da Consolidação Normativa Judicial dispõe que nos casos de morte do titular da serventia privatizada, os contratos de trabalho não são extintos se o substituto assumir as obrigações trabalhistas. Então, cabe ao titular substituto negar a assunção das responsabilidades, deixando de dar continuidade aos contratos em curso. Se isso não for feito, automaticamente incide a figura da sucessão de empregadores, pois já se disse: as relações são privadas e reguladas pela legislação privada trabalhista, que prevê expressamente a hipótese.O parecer do Juiz-Corregedor da Justiça Estadual juntado pela parte autora não pode ser considerado para imputar as obrigações trabalhistas ao espólio. O parecer afasta a incidência da sucessão trabalhista sem considerar as premissas que sustentam os dispositivos da legislação protetiva, principalmente a da inserção do trabalhador no complexo produtivo. A prevalecer a tese do Juiz-Corregedor, o que se fará com os créditos de empregados de serventias cujos titulares dilapidaram seu patrimônio? Neste caso, ou se fará uma interpretação casuística, o que não se pode imaginar, ou se deixarão os trabalhadores “a ver navios”, o que não é razoável. Logo, a interpretação mais segura é ainda a que atribui responsabilidade ao sucessor.É como decido. Diante da sucessão de empregadores, o réu não tem responsabilidade pelos créditos reclamados neste processo e as pretensões formuladas contra ele são improcedentes.
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